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domingo, 5 de junho de 2022

Devaneios do cárcere

 Tem já 18 meses que tudo se iniciou.

No começo pensávamos que seria uma questão de dias.

Mas os dias se converteram em semanas.

As semanas se teceram em meses.

E os meses, sufocantemente, se prolongam...

 

O mundo parou (ou deveria?).

Percebemos o quão insignificante somos.

Algo que, de tão pequeno, sequer podemos ver... Fez-se perniosamente presente.

 

Nos tornamos mestres (ou seríamos reféns?), por detrás das telas.

Acordamos, comemos, trabalhamos, dormimos: espionados por uma luz azul viciante.

Monitorados por essas “tornozeleiras” eletrônicas.

 

Os olhos doem. A cabeça dói. O corpo sofre os impactos dessa prisão sem grades.

Entre quatro paredes, apenas com minha companhia felina, as esperanças se esvaem.

Os ponteiros do relógio seguem seu trajeto despreocupadamente.

 

Parcialmente imunizado contra o invisível ser,

Ele se modifica e transforma para seguir seu maligno intento.

 

Delta

Gama

Mu

E varia...

Varia...

 

Minha sanidade também passa a variar.

E meu humor acompanha.

 

Entre a cama e o chuveiro, neste calor insuportável, neste inverno seco,

Me desidrato – aos soluços – com o sumo que perco pelos olhos.

Aos soluços, embalo em sonhos vazios.

 

A furadeira, nos cubículos vizinhos,

As marteladas, frequentes nas obras incessantes,

O som persistente de objetos colidindo com o solo,

E         c          o          a          m         .           .           .

 

Faz-se uma trilha sonora, para as infindáveis reuniões que

Se tornaram cada vez mais frequentes,

Insistentes...

 

Se, nos primeiros dias, buscava a regularidade,

Hoje apenas sigo, num automatismo inconsciente.

Contraproducente...

 

Prefiro não mais ver noticiários... O descaso das autoridades deprime.

Vidas se tornaram números.

Nunca a matemática me pareceu tão fria quanto agora.

Me sinto um tolo, pois os lacrimejantes soluços são frequentes.

 

Esse universo distópico, que jamais poderia ter se tornado real,

Tornou-se assustadoramente presente.

Um pesadelo tão realista que não me permite abrir os olhos para sair desse paradoxo.

 

As horas do dia passaram a ser um verdadeiro cárcere.

Mas não temos “banho de sol”.

Não temos regularidade para as refeições.

Não temos nada além de dispositivos, conexões...

E um incessante trabalho, a consumir todos os instantes de nossa vida.

 

Perdemos os sentidos.

Perdemos o contato físico.

Perdemos...

            Perdemos...

                        Perdemos...

 

E aos poucos, perderemos também nossa humanidade.

Nossos direitos. Nossos sentidos. Nossos pensamentos...







O poema acima foi escrito originalmente em 09 de setembro de 2021, tendo sido submetido a um concurso literário.